ser
1.
só as crianças possuem o feitio de viver sendo rebeldes.
digo aos quatro ventos e a quem pergunta que o meu plano agora é me mudar pro meio do mato, viver de forma simples, comendo o que se planta, convivendo com bichos — exceto sapos e rãs — e sem muitos luxos.
"só quero uma casinha ao estilo caseiro e nada mais".
imagino sempre essa casa pequena, com chão de cimento vermelho, duas cadeirinhas na sacada e um jardim de grama aclimatada, que não precisa de nenhum tipo de manutenção. quando falo, consigo ouvir os passarinhos cantando pela manhã, sentir o clima ameno facilitado pela arborização, o cheiro de café misturado com o da relva e os meus pés descalços, tocando a textura áspera e gelada do chão.
imaginar toda essa cena faz com que o plano se torne mais real, mas também tem outro resultado, esse mais prático e rápido: me tirar de onde estou. há um fundo de verdade no tal plano, sim, mas a verdade está mais ao fundo: ele é menos que isso. de fato, é apenas um desejo. ou menos, uma imaginação, um filme que crio na minha cabeça pra me distanciar das exigências que agora sinto.
2.
eu sempre disse pra mim mesmo que seria um rebelde. perpetuava todos os "vai tomar no cu" e "que se foda" que ouvia nos discos de rock durante a minha infância, usava calças folgadas que mostravam metade da cueca e questionava os nãos insistentes até chegar a um sim cansado. era algo que me divertia: a desaprovação das pessoas (adultas) era um incentivo. fazer o que quer quando ninguém quer a não ser você está intrinsecamente ligado à felicidade. é liberdade, afinal. era isso que tornava eu, eu.
mas o que o tempo dá, ele também tira. virar adulto, transpassar a fronteira imaginária determinada por uma idade e algumas mínguas de responsabilidades, é assinar um termo de compromisso invisível, onde não há leitura prévia das regras. você só tem algumas promessas que são suficientes pra te fazer acreditar que é, mesmo, um bom negócio. o que não podia ser feito antes, agora não é mais um problema. posso fumar, beber, experimentar, usar, transar, vestir, ousar, falar sim e não, não falar, comprar. tudo isso ofusca os asteriscos. o primeiro deles, a gente descobre depois, é que não dá pra voltar atrás. o segundo é que, em troca de toda essa liberdade-prazer, a gente precisa aprender a se prender, também. o prazer, outrora sentido através dos olhares de reprovação, passa a se transformar em solidão. ou mais que isso: em uma vigilância cruel, que não tem força física, óbvio, mas tem poder de transformar espontaneidade em vergonha e constrangimento.
nada disso é percebido enquanto se vive tais momentos. há quem viva, inclusive, sem notar — o que jamais deve ser interpretado como desleixo ou alienação. o problema é, mesmo, o modus operandi. ele é sorrateiro, ardiloso. ninguém sente. porque o plano é esse. eu não sinto e, passo tanto tempo sem sentir que, quando sinto, percebo, na verdade, um apagamento de quem eu sou. é aí, então, que noto a ausência de mim em decorrência da presença dos olhares. é como se eles tivessem força pra suprimir o que de fato é palpável: eu (ou de como me reconhecia). é quando passo a ter dúvidas sobre quem eu sou. o que me torna eu, eu?
não consigo responder. por um lado, sinto orgulho de quem eu era e, invariavelmente, me acho melhor lá. por outro, agora, não sei o que é ser dentro do meu próprio prisma: sou o que as pessoas pensam que sou, quem eu imagino ser ou quem eu mostro ser? e afinal, o que eu mostro ser? e o que as pessoas pensam de mim?
3.
a casa do mato não deixa de ser, também, uma forma de escapismo, mas não consigo colocá-la dessa forma, dentro do mesmo pacote das distrações. com o tempo, noto que ela passa a se tornar um lugar mental. se antes, só a visitava quando precisava, agora, de alguma forma, ela passou a habitar em mim e não eu nela.
percebo quando a luz entra, quando a neblina toma conta do ar, quando o silêncio se instaura e dá clareza pros pensamentos e passo a admirá-la como uma amiga cuidadosa, que está sempre presente: tão sólida, intacta, tão capaz de ser abrigo como lar.
e apesar de ser o que me tira de onde estou, é observando suas paredes e suas marcas que passo a aceitar, aos poucos, o que de fato significa "ser": um verbo que, como todo verbo, se muda e se molda de acordo com o tempo.
esse é meu primeiro texto/ensaio mais confessional. devo dizer que foi um dos mais difíceis, também. passei uns bons meses pra colocar o ponto final. apaguei um rascunho inteiro porque não conseguia me enxergar nas palavras que pouco antes tinha escrito. faltava intimidade com o formato, sim, mas, com o tempo, também passou a ser um exercício de terapia — pra não dizer exorcismo.
notei que o que eu estava tentando relatar era mais difícil do que eu imaginava. sempre vinha de forma artificial, como se eu não estivesse pronto, como se eu estivesse tentando mascarar o que eu queria falar. durante o processo, lembrei de uma frase do neil gaiman — que não lembro com exatidão ao ponto de colocar entre aspas, mas vai assim mesmo —: a gente só se torna escritor de verdade quando nos colocamos nu diante dos leitores (e de nós mesmos), quando somos vulneráveis e verdadeiros com o texto.
com esse ponto final, sinto que fui verdadeiro.
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